Vez ou outra surge um anime que nos pega de surpresa.
Para nós, blogueiros, o último sucesso com certeza foi Kuzu no Honkai. Meus colegas Vitor do Otaku Pós-Moderno e Fábio do Anime 21 me contaram que a série não só virou uma sensação, como fizeram suas resenhas quebrarem recordes de tráfego.
A atenção é merecida. A série pode parecer só mais um drama escolar, mas se afunda no tema que nunca falha em despertar interesse – ou polêmicas.
Sexo.
Kuzu no Honkai, no entanto, não é apenas um pornô softcore. É uma das melhores explorações de sexualidade adolescente que o mundo do anime já trouxe. E que ressalta uma pergunta mais antiga que a modernidade:
O que, afinal, é esse “sexo” que tanto atormenta os jovens?
O sexo nosso de cada dia
Parte do sucesso de Kuzu no Honkai está em como desafia nossas expectativas.
O anime acompanha Hanabi Yasuraoka e Mugi Awaya, dois colegas do ensino médio. Ambos têm paixonices platônicas por adultos que estão fora de seu alcance. Mugi ama Akane, sua professora de música. Hanabi ama Kanai, figura paterna presente desde a infância.
Impedidos de consumar seus desejos, eles decidem virar “namorados” de mentira, “amigos coloridos” que “usam” um ao outro como substitutos de seus amados. A regra é uma só: independente do que acontecer, eles nunca devem se apaixonar.
É o roteiro de incontáveis comédias românticas batidas, mas que o anime da Lerche, baseado no mangá de Mengo Yokoyari, vira de ponta cabeça.
Para o desespero de fãs de romance – e alegria dos que detestam a fórmula – Kuzu no Honkai passa longa da história bonitinha de amigos que descobrem a felicidade do amor.
Como disse Jacob Chapman do ANN, este não é um anime sobre amar os outros, mas sobre odiar a si mesmo. Tal como Umibe no Onnanoko de Inio Asano, é sobre jovens que levam o sexo para um caminho auto-destrutivo – e tudo o que perdem no caminho.
Kuzu no Honkai não é um anime erótico mais do que um anime sobre o erotismo. É uma história sobre a iniciação sexual: a época tão esperada – e assustadora – das nossas vidas que a grande mídia insiste em retratar com a inocência de um comercial de margarina.
O anime não tem medo de “sujar as mãos” e mostrar episódios pelos quais todos passamos, mas raramente falamos. De uma garota lavando o sêmen que grudou na roupa às dores do vaginismo, ele é um dos retratos mais realistas de sexo que a censura R+ (não-hentai) pode oferecer.
Mais importante, Kuzu no Honkai aborda as confusões e dilemas pelas quais adolescentes passam ao começarem a vida sexual. E os traumas que sofrem quando exigem de si mais do que seus corpos – e suas mentes – estão dispostos a dar.
A ditadura do orgasmo
Dizer que adolescência tem tudo a ver com sexo é um dos clichés mais antigos que existem. Mesmo assim, há quem diga que a juventude moderna está bem distante do estereótipo “sexo, drogas e rock n’roll” popularizado por Skins.

O seriado “Skins”
E não falo apenas da pesquisa que está circulando em grupos otakus, dizendo que os jovens de hoje fazem menos sexo do que nos anos 1960. Há quem diga que, de uma libertação, o sexo virou uma prisão.
A opinião é da historiadora Mary del Priore. Anos atrás, ela escreveu um livro argumentando que a Revolução Sexual quebrou alguns tabus, mas trouxe outros.
Muita coisa mudou, é verdade. A pílula anticoncepcional libertou as mulheres do fardo da gravidez. O sexo antes do casamento se tornou normal. Relações homossexuais passaram (lenta, mas gradualmente) a ser aceitas.
Os jovens dos anos 1960 viraram de ponta cabeça nossa relação com a sexualidade, e sua influência – e a felicidade das gerações futuras – não pode ser subestimada.
Porém, a Revolução Sexual trouxe também outro tipo de fruto. Do “amor livre”, veio a mentalidade que o amor “preso” deveria acabar. Monogamia virou coisa do “rebanho”, não de pessoas “interessantes”. De direito, sexo virou obrigação, e quem não transava – ou não transava o suficiente- passou a ser mal visto.
É a ditadura do orgasmo.
Kuzu no Honkai mostra com todas as letras a angústia dessa geração. Hanabi e Mugi não se relacionam apenas para aliviar a dor de cotovelo. Eles sentem que precisam transar, mesmo que o sexo não lhes traga nada além de tristeza, dor e ódio próprio.
Nos quadros do anime, vemos preliminares, sexo, “primeiras vezes”. O que não vemos é amor, satisfação ou qualquer tipo de alívio. Não há sequer o prazer vazio que move adolescentes menos torturados de outras histórias.
Se para alguns o sexo é uma fuga ou um veículo de “empoderamento”, para os jovens de Kuzu no Honkai é uma droga: ele os destrói, mas sem ele não conseguem viver.
Da senpai que tirou sua virgindade, Mugi se recorda: “ela se sentia sempre solitária. Não era normal“. Hanabi chega na mesma conclusão por outro caminho. Após uma noite de sexo frustrado, sem conseguir extravasar o desejo, o terror a assombra: ficar sozinha é insuportável.
As relações de Kuzu no Honkai são extremas, mas as angústias que elas retratam não.
Quem nunca beijou alguém por quem não se atraía para não virar motivo de chacota? Ou insistiu em um namoro insosso pelo medo de ficar sozinho? Ou transou com um (ou vários) desconhecido(s) para depois se sentir sujo e patético, um “pedaço de carne” humano?
Atire a primeira pedra quem nunca, em algum momento da vida, não sentiu, como Mugi, que estava deixando a adolescência escapar pelos dedos?
Como disse o filósofo Ryszard Legutko, nossa época criou a impressão de que precisamos estar estimulados 100% do tempo. O problema, como bem disse o Guiper do Otaku Pós-Moderno, é que uma vida de estímulos fáceis traz apenas o tédio.
Estamos esclarecidos? Ou só confusos?
Mary del Priore publicou A História do Amor no Brasil em 2006. Curiosamente, mais ou menos na mesma época em que a saga Crepúsculo se tornava um fenômeno editorial.
O timing não poderia ter sido mais perfeito. A quadrilogia da Stephanie Meyer, de fato, é um protesto contra a “ditadura do orgasmo”. A série é uma apologia à castidade, mostrando a virtude de controlar os hormônios e amar do jeito “certo”. De preferência, depois do casamento.
Teria a historiadora acertado? Dez anos depois, as coisas parecem diferentes. O sexo tem se tornado cada vez mais popular no gênero young adult. Séries como garota ama garoto se gabam de mostrar a sexualidade jovem como ela é. Mesmo o açucarado John Green, de A Culpa é das Estrelas, causou polêmica ao incluir uma cena de sexo oral em Quem é Você, Alasca?
Claro, o mainstream é uma faca que corta dos dois lados. O interesse pode indicar que estamos encarando o sexo como algo mais normal. Ou, pelo contrário, que nos sentimos perdidos, buscando na arte alguma resposta para nossa confusão.
Como conclui Mary del Priore:
Há grande contraste entre o discurso sobre o amor e a realidade da vida dos amantes. O resultado? Escreve-se cada vez mais sobre a banalização da sexualidade e o desencantamento dos corações enquanto o amor mantém-se um sentimento sutil e importante que continua a fazer sonhar, e muito, muitos homens e mulheres.
O mesmo vale para o sexo. Lolita foi publicado em 1955. O Retrato do Artista Quando Jovem, em 1916. O Despertar da Primavera (a peça, não o musical), em 1891(!). Se existe uma “ladra de adolescências” à solta, Mugi não foi sua primeira vítima – e não será a última.
É por isso, talvez, que histórias como Kuzu no Honkai continuarão a ser contadas.
Excelente artigo de Kuzu no Honkai, Vinicius Marino, este sem dúvida, foi o melhor artigo de Kuzu no Honkai que já li até agora. O artigo em si, está muito bem organizado e a forma como explicaste o drama dos personagens foi muito boa. Já para não falar, da tua escrita fluída e fácil de entender. Eu já gostava deste blog, desde que vi aqui, um artigo, super bem feito sobre Joker Game, mas agora com este artigo de Kuzu no Honkai já ganharam mais um fã.
Muito obrigado, Kondou-san! Vindo de você, é uma grande honra (Acompanho seus comentários no Anime 21. Sei que é bem criterioso com o que lê rs)
Então também lês, aqueles comentários malucos, que eu escrevo lá no Anime21, só tenho que agradecer, pelo facto de os leres, eu respeito muito o trabalho que vocês fazem. Aquele teu artigo de Joker Game, já me tinha deixado fã, deste blog (fora os variados artigos, que fazem aqui), eu como amo história, amei ler o artigo de Joker, a maioria das explicações históricas dadas lá, eu já sabia, mas ainda assim aprendi muita coisa que não sabia. Então agora, com este excelentíssimo artigo do polémico Kuzu No Honkai, eu não consegui evitar, deixar um comentário a elogiar este artigo.
Oh, concordando com o Kondou-san, admiro suas habilidades de escrita ao ver este belíssimo texto de um assunto não tão belo, que é o abordado por Kuzu no Honkai e muitas outras obras. Obrigado mesmo por compartilhar uma resenha tão instrutiva e inspiradora!