Nos games, senão na vida, desastres são incríveis. Nada nos força a pensar fora da caixa durante uma partida do que ver tudo o que construímos desabar de um instante para outro.

Essa é uma experiência que Os Triunfos de Tarlac tinha o objetivo de providenciar desde o princípio. Afinal, nosso jogo toca não só uma, mas  três crises mais ou menos simultâneas que sacudiram as Ilhas Britânicas na Idade Média: A Pequena Era do Gelo, a Grande Fome de 1315-1322 e a Primeira Guerra de Independência da Escócia.

Mas há uma contradição intrínsica na ocorrência de desastres que salta aos olhos quando tentamos transpô-la a um jogo: pela sua própria natureza, eles não acontecem toda hora.

Isso não é um problema para games que já de pronto nos lançam uma tragédia no colo.

Mas é, sim, uma questão complicada quando a proposta é retratar a normalidade de um dado povo, sociedade ou nação – e como um evento inesperado pode, da noite para o dia, pô-la em risco.

Os desastres de Tarlac

Exemplos de desastres em “Tarlac”

Pode não parecer, mas o desafio, no fundo, é uma questão de escala.

Os Triunfos de Tarlac abrangem cerca de quarenta anos de história,de 1277 a 1318. Dois dos três eventos calamitosos que queríamos fazer os jogadores enfrentar só começaram a dar as caras por volta de 1315. Esta foi a data de uma invasão escocesa da Irlanda, parte da Guerra de Independência que opunha Inglaterra ao seu vizinho setentrional. A campanha destruiu as finanças do governo colonial inglês. De quebra, ajudou a piorar um período de vacas magras que assolava toda a Europa.

Se parasse por aí, Tarlac poderia beber sem problemas de convenções já existentes nos jogos de estratégia. Teríamos uma “primeira fase” com mecânicas normais (1277 a 1314)  e um “end game” cataclísmico (1315 a 1318 ) em que a astúcia dos jogadores seria posta a prova.

O problema é que tínhamos uma terceira crise a implementar. Não só isso, mas uma crise de um tipo terrivelmente pernicioso: uma mudança climática.

A Pequena Idade do Gelo foi um período de esfriamento global que teve início por volta de 1300 e quebrou as pernas das economias do norte da Europa. “Por volta” é a palavra chave. O clima não opera na mesma escala de tempo que seres humanos, e seus processos podem levar décadas – quando não séculos.

Isso torna esse tipo de crise difícil de enxergar antes que o pior aconteça. Algo que, infelizmente, observamos em nossos próprios dias nas ações e palavras de negacionistas climáticos.

No caso específico da Irlanda medieval, essa mudança já começa a mostrar suas garras na década inicial do nosso jogo, causando uma série de invernos frios e temporadas de chuvas fortes. Este tempo inclemente provocou colheitas ruins – que, com o tempo, trouxeram a carestia e a fome.

Infelizmente, esse processo era longo demais para que nosso jogo desse conta de retratar. Cada rodada de Tarlac foi pensada para representar um ano. E é impossível esperar que uma única partida se estenda por quarenta rodadas, quando cada turno dura, em média, mais de trinta minutos.

Para o jogo ficar divertido, ele precisava poder ser concluído em, no máximo, seis ou outo rodadas – do contrário, estaríamos falando de um dia inteiro de jogatina! O que nos dava, em tempo histórico, menos de uma década para reproduzir quase meio século de mudanças climáticas.

Para a surpresa de ninguém, nossos resultados iniciais foram bem longe de ideais. Em nosso primeiro protótipo, os desastres eram determinados pela rolagem de um d20: os primeiros cinco ou tantos números representariam os principais tipos de desastres; os demais representariam anos em que nada significativo aconteceu.

Logo percebemos que as rolagens haviam virado letra morta: a probabiilidade de alguém rolar um não desastre era de 80%.  Mesmo quando dávamos sorte e alguma crise interessante acontecia, seus efeitos não tinham tempo gerar a bola de neve que resultou na Grande Fome.

Nós entendemos que tínhamos duas opções na manga: ou adaptávamos as ações humanas ao ritmo da economia, ou simplificávamos a economia para se adequar à percepção humana.

A primeira solução significaria abrir mão de todas as mecânicas que já havíamos desenvolvido para o combate – o que, depois de tanto esforço para acertá-las, não era algo que estávamos considerando.

Restava, portanto, o segundo caminho.

Uma crise no fast forward

Para nossos protótipos seguintes, substituí o dado por um baralho de desastre, em que todas as cartas representavam algum tipo de evento. Se você já jogou Fief: France 1429, sabe exatamente qual é o princípio.

Exemplo de carta de sorte em “Fief”

Não existiam mais cartas “em branco”. Todo ano, portanto, forçaria os jogadores a lidar com uma desgraça diferente. Ainda assim, precisávamos decidir com que frequência os desastres ocorreriam – senão em relação a anos de bonança, pelo menos em relação uns aos outros.

Não se tratava apenas de determinar sua probabilidade. Afinal de contas, alguns tipos de desastre são resultado diretos de outros. Chuvas fortes, por exemplo, aumentam a chance de uma colheita ruim, que aumenta a chance do reino experimentar uma crise de abastecimento.

Eu já estava pensando em incorporar algum tipo de card game digital para dar conta do recado. Felizmente, o Gabriel Cordeiro, um dos historiadores da equipe, nos trouxe uma solução mais orgânica: um baralho cuja composição se altera ao longo da partida, tal como o do jogo Seven Wonders.

O jogo “7 Wonders”

Tomamos os cenários iniciais que havíamos montado para refletir as mudanças diplomáticas e demos a cada um seu próprio baralho de desastres.

Na maioria deles, os efeitos são razoavelmente brandos, refletindo a calmaria antes da tempestade que permitiu aos ingleses expandirem sua influência entre 1277 e 1300.

A partir daí, as coisas complicam. Os baralhos dos cenários “A Invasão Escocesa” (1315), “A Batalha de Loch Rásga” (1317) e “A Batalha de Dysert O’Dea” (1318) são recheado de eventos que dificultam – e muito – jogar com os ingleses.

Alguns desses eventos têm o efeito especial de acrescentarem cartas ao baralho – aumentando, portanto, a probabilidade de outros desastres acontecerem.

Essas cartas extras são removidas após a próxima carta de desastre ser comprada, tendo portanto a duração de uma rodada.

Tipo de desastreCartas a serem acrescentadas ao baralho
Chuvas fortes8x Fascíola Hepática e 4x Fracasso da Colheita
Fracasso da Colheita4x Fome
Guerra (qualquer uma)8x Recunhagem

Graças a essa mecânica, mesmo um cenário pré-1315 pode encrespar rapidamente, se os jogadores derem o azar de comprar alguns dos desastres da tabela acima.

Assim, nossa solução se provou mais elegante do que a que implementamos para a diplomacia. Embora cada cenário tenha seu próprio baralho, é teoricamente possível que  um baralho brando “evolua” a um baralho severo ao longo da partida.

Possível, mas não certo – tal como as crises reais da história, imprevisíveis por natureza.

Acurácia histórica e tempo histórico

Já é um clichê dizer que não é possível fazer um game 100% preciso do ponto de vista histórico. Para começar, porque “precisão” pode ser entendida de jeitos diferentes: detalhes visuais autênticos, mecânicas que correspondem a costumes do passado, objetivos que fariam sentido a atores da época.

Às vezes, para acertar em um, é necessário sacrificar outro. E cabe a nós, game designers e historiadores, decidir onde traçar a linha.

Desenvolver o sistema de desastres de Os Triunfos de Tarlac nos fez entender que há uma outra definição de “precisão histórica” que nem sempre levamos em consideração: a escala temporal.

Como dizia Fernand Braudel ( e tantos outros historiadores), nem todos os eventos históricos ocorrem na mesma duração. E algumas dessas “durações” são longas demais para serem percebidas por uma pessoa – ou mesmo uma geração de pessoas. Quem dirá, então, de um grupo de gamers com poucas horas a disposição para jogar uma partida.

É algo importante de se ter em mente da próxima vez que sentirmos vontade de criticar um jogo por tomar liberdades com o tempo. Por exemplo, um wargame que simplifica uma batalha de dias em um único rolar de dados; um videogame mundo-aberto cujo cenário é uma fração do país que desejava retratar, ou um game de simulação em que jogadores podem mudar a cultura de toda uma civilização comprando a carta certa.

Sim, todas essas coisas são distorções. Mas a função da distorção, no design tal como na história, é tornar algo mais fácil de enxergar. Nesse caso, é difícil argumentar que não cumprem seu objetivo.

 

In games, if not in life, disasters are awesome. Nothing forces us to think outside the box during a board game match than witnessing everything we built crumbling from one moment to the next.

This is an experience that The Triumphs of Turlough was supposed to offer from the very start. After all, our game touches upon not one, but three more or less simultaneous crises that shook the British Isles up in the Middle Ages: the Little Ice Age, the Great Famine of 1315-1322, and the First War of Scottish Independence.

But there is an intrinsic contradiction in the occurrence of disasters that becomes glaring when we attempt to transpose them to a game: by their very nature, they don’t happen all the time.

This isn’t a problem for games that drop a tragedy on our lap from the get go. But it is, indeed, a complicated issue when the goal is to portray the normalcy of a given people, society or nation – and how an unexpected event may come to threaten it.

The disasters of Turlough

Examples of disasters in “The Triumphs of Turlough”

It may not look like it, but the challenge, in the end, is one of scale.

The Triumphs of Turlough spans roughly forty years of history, from 1277 to 1318. Two of the three catastrophes we wanted our players to face only started to play their hands around 1315. This was the date of a Scottish invasion of Ireland, part of the War of Independence that pitted England against its northern neighbor. The campaign took a toll on the finances of the English colonial government in Ireland. What is more, it helped worsen a period of lean cows that beset all of Europe at the time.

If we stopped right there, Turlough could easily do well by relying on the existing conventions of the strategy genre. We’d have an initial phase with normal mechanics (1277 to 1314) and a cataclysmic end game in with players’ resourcefulness would be put to the test.

The problem was we had a third crisis to implement. And what is worse, it was the most insidious type of crisis of all: a climate change.

The Little Ice Age was a period of global cooling that started around 1300 and broke the legs of the economy in many Northern European countries. “Around” is the key word here. The climate doesn’t operate in the same temporal scale human beings live in, and its processes can take decades – if not centuries – to be felt.

This makes this type of crises difficult to perceive before the worst comes to pass. Something we can unfortunately observe in our own present age, in the actions and words of climate change deniers.

In the case of medieval Ireland, specifically, this change started to show its colors in the first decade of our game, causing a series of unusually cold winters and disastrous rainfall. This inclement weather caused a string of harvest failures – which, in turn, brought upon supply shortages and famine.

Unfortunately, this process was way too long for our game to handle. Each round in Turlough was designed to represent a year. It is impossible to expect that a single match would extent for forty rounds, when each turn, on average, lasts longer than thirty minutes.

For the game to be fun, players should be able to finish a match in no more than 6-8 rounds – and even that would be pushing their patience. Otherwise, we’d be looking at an entire day spent around the game board!

In historical time, that gave us less than a decade to portray roughly half a century of environmental changes.

To nobody’s surprise, our initial results were far from ideal. In our very first prototype, disasters were determined by a d20 roll: the first five or so numbers represented the main types of disaster; the rest represented years in which nothing significant happened.

We soon noticed that the rolls were moot: the probability of someone rolling a non-disaster was 80%. Even when we got lucky and some interesting event took place, its effects didn’t have time to snowball into the crisis that led to the Great Famine.

We realized we had two options up our sleeve: we could either adapt human agents to the pacing of the economy, or simply the economy to fit into human perception.

The first solution required discarding all the combat mechanics we had already developed – something which, after the pains we took to make it work, was not something we’d consider doing.

We were left, then, with the second alternative.

A crisis on fast forward mode

For our next prototypes, I replaced the die with a disaster deck in which every card represented some significant event. If you played Fief: France 1429, you should recognize the principle right away.

Example of fortune card in “Fief”

There were no more “blank” cards. Every year, therefore, would force players to deal with a different calamity. Still, we needed to decide how frequently each disaster would occur.

It wasn’t just an issue of determining their probability of being drawn. After all, some types of disasters are direct results of others. Abnormal rainfall, for example, increases the likelihood of harvest failures, which makes a kingdom more vulnerable to a shortage crisis.

I was already thinking in incorporating some sort of digital card game when Gabriel Cordeiro, one of the team’s historians, offered us a much more organic solution: a deck whose composition changed throughout the match, as in the game 7 Wonders.

The board game “7 Wonders”

We took the initial scenarios we had developed to reflect diplomatic changes and gave each one its own disaster deck.

In most of them, the events are relatively mild, reflecting the calm before the storm that allowed the English to expand their influence in Thomond between 1377 and 1300.

From that point on, things got messier. The decks for the scenarios “The Scottish Invasion” (1315), “The Battle of Loughrask” (1317) and “The Battle of Dysert O’Dea”(1318) are filled with calamities that make it very hard to play as the English.

Some of these events have the additional effect of adding new cards to the deck – as such, increasing the probability of other disasters happening.

These extra cards are removed after the next disaster card is drawn, lasting, therefore, a single round.

Disaster TypeCards to be added to the deck
Heavy Rainfall8x Liver Fluke Disease and 4x Harvest Failure
Harvest Failure4x Famine
War (any)8x Recoinage

Thanks to this mechanic, even a pre-1315 scenario could rapidly get worse if players were unlucky enough to drawn some of the disasters in the table above.

As a consequence, our solution proved to be a much more elegant way to portray historical change than the system we had invented for the diplomacy. Although each scenario has its own deck, it is theoretically possible for a mild deck to “evolve” into a more severe one throughout the match.

Possible, but not certain – just like the real crises in history, unpredictable by their very nature.

Historical accuracy and temporal scale

It is already a cliché to say that it isn’t possible to make a 100% accurate historical game. To begin with, because “accuracy” can be understood in many different ways: accurate visual elements, mechanics that correspond to customs and practices of the past, objectives that’d make sense to people of that period.

Sometimes, to get one right, we are forced to sacrifice others. And it is up to us, game designers and historians, to decide where to drawn the line.

Designing the disaster system for The Triumphs of Turlough made us understand that there is another definition of “historical accuracy” that is not always taken in account: temporal scale.

As Fernand Braudel ( and so many others) used to say, not all historical events happen in the same time frame. And some of these “durrées” are too long for any person – or even a generation of them – to notice. How can a group of gamers with no more than a few hours at their disposal fare any better?

This is something important to keep in mind next time we feel like criticizing a game for taking liberties with their time scale. For example, a wargame that simplify a battle that took days into a single dice roll; an open-world videogame whose scenario is a fraction of the country it wanted to portray; a kingdom simulator in which players may switch the culture of all of their subjects by drawing the right card.

Yes, these are all distortions. But the purpose of the distortion, in history just like in visual design, is to make something easier to perceive. In this case, it’s hard to argue it doesn’t do justice to this goal.