Dia das mães. Não há ocasião melhor para relembrar os percalços e emoções de nossa vida familiar – ou das de nossas personagens favoritas.
Claro, os dramas que gostamos de ler ou assistir costumam ser bem diferentes dos que desejamos para nós mesmos. Como disse Tolstói, todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. E nada faz uma história mais interessante do que a variedade.
O autor de Anna Karenina não estava pensando em mangás e animes, mas seu comentário cairia como uma luva. No site TV Tropes, os exemplos de conflitos familiares em desenhos e quadrinhos japoneses são tão numerosos que merecem artigos à parte.
Talvez justamente por tocaram em dramas tão íntimos, que nos despertam tanta compaixão, famílias ausentes (ou problemáticas) são um truque tão usado para ganhar os corações do público.
Fãs do estilo podem aproveitar o momento para conhecer (ou revisitar) uma de suas obras menos conhecidas. O curto mangá Kami-sama ga Uso o Tsuku. – em inglês, The Gods Lie., uma pequena joia dos últimos anos, acaba de ganhar uma nova edição anglófona.
Os deuses também mentem
Com sua capa em cores pastel, O one-shot de Kaori Ozaki (autora de Immortal Rain) não é à primeira vista um título que chama a atenção. Basta virar as páginas, no entanto, para percebermos que estamos diante de algo excepcional – e incrivelmente sério.
A trama acompanha Natsuru, uma criança de 11 que sonha em ser jogador de futebol. Órfão, vive sozinho com a mãe. Seu treinador, que estima como um pai adotivo, é subitamente afastado e substituído por um outro, mais jovem e agressivo.
Ele ridiculariza Natsuru na frente de seus colegas e lhe diz que não tem talento para o esporte. Seus colegas de time, antes tão entusiasmados como ele, começam a fazer outros planos para o futuro. Seu sonho de se tornar um jogador profissional começa a se esfarelar.
O destino o leva de encontro a Rio, uma colega de classe que vive sozinha com seu irmão. Tal como ele, Rio também é orfã (em seu caso, de mãe). Tal como ele, Rio se sente desamparada. Seu pai, pescador de caranguejos, passa meses a fio no litoral do Alaska.
Juntos, eles aprendem a se dar conforto em um mundo que não parece ter sido feito para eles, do qual os “deuses” – os adultos – parecem ter desistido.
The Gods Lie. é impressionante – e às vezes chocante – porque nos mostra aquele lado da juventude que sabemos existir, mas que temos medo de encarar.
Em alguns aspectos, ele é uma versão PG-13 de Umibe no Onnanoko, do qual já falei aqui e aqui. Se no mangá de Inio Asano a negligência leva dois jovens a uma rotina auto-destrutiva de sexo, os protagonistas de The Gods Lie., mais jovens (e bem mais inocentes) encontram paz tornando-se uma “família” de mentira.
Pais ausentes, filhos pródigos
O mangá de Kaori Ozaki desafia até o que entendemos por “sair do ninho” – e, consequentemente, o que define o gênero coming of age como um todo.
Existe uma ideia bastante arraigada de que a adolescência é a época da rebelião e da independência. Crescemos para sair da manada e nos tornarmos indivíduos, donos do nosso próprio nariz, responsáveis por nossa própria felicidade.
É a visão por trás de quase todas as histórias de formação, de O Despertar da Primavera e Um Retrato do Artista Quando Jovem até os mais recentes animes slice of life. A família, a escola, a sociedade e até nosso próprio corpo são “teias” nos impedindo de voar, obstáculos a serem superados na jornada pessoal por liberdade.
É, também, a visão por trás do escapismo, da ideia de que nossos anos de ouro podem ser uma porta para um mundo paralelo, longe dos perrengues da vida adulta. A adolescência vira a última barreira antes do terrível mundo real, a “calmaria antes da tempestade” em que podemos encarnar qualquer personagem, experimentar qualquer coisa e viajar para qualquer universo.
Há, porém, uma outra visão (bem menos glamurosa) do coming of age. É a ideia do crescer como “tomar a tocha” da velha geração, integrar-se ao sistema, fazer as pazes com o establishment.
É saber que nenhuma pessoa é uma ilha, que por mais sedutor que pareça o sonho de fugir com o circo, ele será apenas um sonho. E que, por mais chato seja aceitar a autoridade daqueles que “querem nosso melhor”, eles muitas vezes têm a completa razão.
The Gods Lie. nos mostra exatamente esse ponto de vista. Os “deuses” – pais, mentores, professores – “mentem” porque se esquivam da sua obrigação de ajudar os jovens a achar seu lugar no mundo. E Natsuru e Rio sofrem porque são adolescentes e não sabem navegar sozinhos as ondas do universo adulto.
Quem prefere o cinema aos quadrinhos nem precisa ir tão longe. The Wolf Children, longa de Mamoru Hosoda e um dos animes mais explícitos sobre a importância da maternidade, nos traz o mesmíssimo conflito.
Na trama, uma mulher se envolve com um homem-lobo, com quem tem duas crianças. Quando seu marido morre, ela se vê obrigada a criar sozinha um casal de filhos divididos entre a natureza animal e a vida em sociedade.
Para Ame e Yuki, as crianças-lobo do título, “crescer” é uma espécie de sacrifício. É mudar para se inserir em uma comunidade, seja ela a floresta, de seu pai, ou a civilização humana, de sua mãe.
Não é à toa que algumas pessoas interpretaram o filme como uma alegoria sobre os filhos de imigrantes, forçados a escolher entre abraçar a cultura de seus pais ou abandoná-la para se acomodar à “nova pátria”.
É interessante imaginar o que esses dois adolescentes falariam um para o outro. O que o sonhador, “rebelde sem causa”, desafeto do sistema teria a dizer para o jovem regrado, que só deseja um lugar para chamar de seu.
Felizmente, não precisamos imaginar. Este diálogo já foi escrito. E rendeu um dos mangás mais tocantes e pés-no-chão a abordar o tema.
Entre a bala e o kompeitou
Satougashi no Dangan wa Uninukenai, também conhecido como Sugar Candy Bullets Can’t Pierce Anything ou A Lollipop and a Bullet, é justamente esse encontro.
Nagisa, nossa protagonista, é uma órfã em uma cidade minúscula do interior. Seu pai, pescador, morreu em uma tempestade. Seu irmão, antes um aluno brilhante, sofreu um trauma e se tornou um recluso. Sua mãe, única trabalhadora da família, tem de labutar dia e noite para sustentar os filhos.
O sonho de Nagisa não é virar uma idol, ser notada pelo senpai ou montar uma banda. É sair da escola e arrumar um emprego o mais rápido possível para contribuir àqueles que ama.
E não qualquer “emprego”, mas o mais caxias (com o perdão do trocadilho) de todos: as forças armadas. Vestir um uniforme, marchar em fileiras e abaixar a cabeça aos superiores em troca de um bom salário é, para ela, o futuro ideal. Escapismo e rebeldia são coisas de jovens ricos com problemas de menos e tempo demais.
Eis que Nagisa conhece Mokuzu, a filha de um popular astro de pop. Ela vive seu período de chuunibyou, dizendo aos outros ser uma sereia e esbanjando os privilégios de uma vida milionária. Em suma, a combinação de tudo o que Nagisa mais odeia.
Não se deixem enganar pelas aparências. A Lollipop and a Bullet não é um slice of life açucarado, nem (pasmem!) um shoujo ai. Ainda mais do que The Gods Lie., o mangá é um retrato penetrante de uma tragédia juvenil.
Nagisa descobre que Mokuzu usa a fantasia para se esconder de um cotidiano aterrorizante que sofre às escondidas. Na medida em que entra no mundo deturpado da amiga, ela percebe que têm mais em comum do que imaginava.
De uma forma ou de outra, ambas desejam fugir. De uma forma ou de outra, as duas compartilham um mesmo sonho. Nagisa quer uma “bala” (munição) para furar a prisão da adolescência e abrir um caminho para o mundo adulto. Mokuzu também quer uma “bala” (doce) para suportar os horrores de sua vida pessoal.
Como bem lembra o Dissidência Pop, poucas imagens expressam melhor a dor da inocência perdida. “Doce” é o esperado que garotas dessa idade sejam. É a palavra que usamos para descrever personagens coloridas, que transbordam de imaginação. É, também, a propriedade do açúcar. E o açúcar, não podemos esquecer, mascara sabores.
O problema, como tudo no escapismo, é que “balas” de açúcar não perfuram nada.
Lendo The Gods Lie. e A Lollipop and a Bullet lado a lado, é impossível não notar o quão parecidos são ambos os mangás. Não apenas em temática ou em seu comentário agridoce sobre a adolescência, mas nos detalhes de seus enredos, nos mesmos twists improváveis e até na composição de cenas.
Se pensarmos bem a respeito, a semelhança não é lá tão estranha. O escritor Alexandr Solzhenitsyn certa vez disse que a função da arte é dizer a verdade. A ciência é transitória; a política, mentirosa. Cabe à arte nos mostrar as verdades interiores, abstratas, que fazem tudo ter sentido.
Cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. Contudo, algumas dores são compartilhadas. E se as histórias de Natsuru e Nagisa são tão parecidas – e tão emocionantes – é porque tocam na mesma verdade.
Há algo mais forte do que isso? Eu acho que não. Afinal, como diz um velho ditado russo, uma palavra de verdade pesa mais do que todo o mundo.
Gostei muito desse post. É uma visão muito interessante de um elemento (ausência dos pais) que vemos tanto, mas que acabamos não dando muita importância devido a forma que as histórias desenvolvem.
Sou escritor e tenho uma história com essa temática. Apesar de não levar para o lado mais pesado, tem um toque realista.
Repito, gostei muito desse post e li Umibe hoje. Assim que tiver tempo, lerei os outros.
Gosto muito do seu blog Sensei, é como se você colocasse o que eu acho sobre as obras em palavras, Obrigado.
Comprei por acaso esse mangá ontem e foi uma das melhores experiências com mangás que já tive, uma pena que pelo menos aqui no Brasil ele não receba o reconhecimento que merece porque ele é absolutamente fantástico, adorei a matéria, parabens <3
No Brasil, o título (pra variar) veio traduzido erroneamente. “The gods lie” – passa muito bem a ideia de “os deuses também mentem”. Mas na versão brasileira veio “The God’s lie” – não sei se é o típico erro de achar que ” ‘s ” é um tipo de plural ou apenas um equívoco. Assim, fica o título: “A mentira que Deus contou”. – não entendo erros assim.
Percebi isso essa semana, ao finalmente comprar a edição física brasileira.
O título original é 神様がうそをつく。(Kami-sama ga Uso wo Tsuku – lit. “Deus conta uma mentira”? Confesso que meu japonês não é dos melhores). Não sei se foi uma confusão primária entre sujeito e objeto ou uma decisão de enfatizar “神様” (Kami-sama) como “Deus” no sentido abraâmico. Segundo a wikipedia, 神様 realmente é usado quando se quer dar a ideia de singularidade, ao contrário de 神々 (kamigami), que seriam “deuses” no plural. Claro, sou um leigo falando: como disse, meu japonês é paupérrimo.
Seja qual tenha sido a intenção original, acho que o título anglófono, “The Gods Lie”, é realmente o mais apropriado. Parece casar bem com a mensagem geral da obra, que mostra como os adultos parecem “deuses” às crianças – e como sua incapacidade humana de honrar esse pedestal afeta aqueles à sua volta.